
Nesta semana, li uma coluna da jornalista Marcella Sobral, publicada em “O Globo”, que me solucionou uma dúvida de décadas. Sempre fiquei encafifado com o nome que o feijão catarino (como é conhecido em Portugal) recebeu aqui no Brasil. Trata-se daquela leguminosa bege com listras marrons, que ganha um tom amarronzado quando cozido. Você pensou no feijão carioquinha? Sim, é esse mesmo. Mas o meu questionamento é o seguinte: se no Rio de Janeiro come-se apenas feijão preto, por que esse tipo (consumido em doses industriais em São Paulo e Minas Gerais) ganhou o epíteto de quem é nascido na capital fluminense?
A colunista de “O Globo” solucionou-me a dúvida: quando o grão apareceu no interior de São Paulo, anos atrás, o desenho rajado era semelhante à pelagem do porco carioca. Estava batizado, então, o feijão que faz a alegria dos paulistas. Aliás, não só de quem mora em São Paulo. Esse tipo de leguminosa responde por 56% das vendas nacionais, ou quase dois milhões de toneladas por ano.
Mas a estrela do dia é outro tipo de grão – o preto. A feijoada é uma instituição nacional e é servida de norte a sul aos sábados e às quartas-feiras (até o início do Século 20, porém, a tradição era diferente: às terças e sábados; por que mudou? Terei de aguardar outra coluna de Marcella Sobral para saber).
Ao contrário do que muitos pensam, a feijoada não foi um prato criado pelos escravizados no Brasil – ou era o resultado do aproveitamento de carnes menos nobres que seriam descartadas. Essa visão, inclusive, denota um certo preconceito com os miúdos, algo que não existe na Europa. Lá, todos os pedaços dos animais são aproveitados e inseridos na gastronomia. Com o porco, diga-se, não é diferente.
Assim, a nossa feijoada nada mais é do que a adaptação de pratos europeus que misturam carnes e grãos, como o francês “cassoulet” e a espanhola “olla podrida”. Mas há duas receitas lusitanas que parecem ser as principais influências do prato que é símbolo do Brasil: o cozido à portuguesa, muito popular no Alentejo, e o feijão à transmontana, da região de Trás-os-Montes.
A feijoada como conhecemos hoje teve origem no Rio de Janeiro. Tanto é que, até os anos 1980, aqui em São Paulo chamava-se a receita popular nos dias atuais como “feijoada carioca”. Essa fórmula surgiu no final do Século 19 no restaurante G. Lobo, que funcionou entre 1884 e 1905 na Rua General Câmara, número 135 (essa via deu lugar à Avenida Presidente Vargas, no centro da cidade).
Foi lá que o feijão-preto enriquecido com carnes de porco variadas foi combinado à carne-seca e recebeu acompanhamentos que se tornaram obrigatórios — arroz branco, couve refogada, laranja fatiada, farofa e torresmo. A fórmula do G. Lobo, rapidamente conquistou o paladar da cidade e se espalhou como referência nacional. Sobre o nome do estabelecimento, paira um mistério. A letra “G” nunca foi explicada com precisão nas fontes disponíveis. Supõe-se que represente a inicial do proprietário, mas não existem fontes que confirmem ou desmintam essa versão. O que se sabe é que muita gente não percebia o ponto que havia entre as letras “g” e “l” e chamava o restaurante de “Globo”.
Outro ponto curioso sobre a iguaria brasileira é sobre a forma de servi-la. Embora hoje seja comum vê-la apresentada em cumbucas individuais, especialmente em eventos com samba e roda de amigos, não há registros que atribuam essa fórmula ao G. Lobo. A ideia das cumbucas parece ter surgido depois, como uma solução prática para porções individuais em estabelecimentos mais populares. O que está bem estabelecido é que o G. Lobo foi mais do que um restaurante: lá tivemos um laboratório gastronômico que mudou a identidade da gastronomia brasileira. Ao reunir ingredientes e acompanhamentos específicos em torno de um prato, criou uma tradição que ultrapassou gerações. A feijoada carioca fez surgir um ritual que ainda hoje une mesas, histórias e afetos. Cujo estrelato se renova a cada sábado, em locais sofisticados ou popularescos.
Portanto, um brinde ao feijão. E viva a feijoada!
Por Aluizio Falcão Filho – Money Report